quinta-feira, 17 de abril de 2014

Juiz não é Deus. Artigo sobre o tamanho da petição. Conjur

Senso incomum


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O caso parece banal. Afinal, que importância tem uma decisão de um juiz que manda refazer uma petição que ele considera muito extensa? Aparentemente, nenhuma, não fosse o problema da democracia e do decisionismo que assola Pindorama. A tal decisão do juiz do Rio Grande do Norte representa, simbolicamente, o descompromisso de setores da justiça brasileira para com o exercício da função pública. Parece que a praga patrimonialista tão bem denunciada por Faoro está tão encalacrada no imaginário dos brasileiros que até mesmo nos mínimos gestos é possível ver a tese da “birô-cracia” (o estagiário levanta a placa: birô=mesa; cracia=força, tudo com uma dose de sarcasmo!), a força do sujeito que está sentado atrás da mesa, que, em vez de prestar serviço público, pensa que está prestando um favor.

Talvez por isso as autoridades em terrae brasilis tomem posse dos cargos. Sim. Posse. E propriedade. E, fundamentalmente, domínio. Aquilo é seu. E sem accountabillity. A burocracia, que foi um dos pilares da modernidade, virou fumaça. A relação cidadão-autoridade deveria ser ex parte princípio. Só que é ex parte príncipe.
O problema nem é o fato. É o simbólico que ele representa. E ainda mais grave é o silêncio eloqüente da comunidade jurídica acerca do fato.
Uma metáfora que se encaixa no "case"
Metáforas nos ajudam a entender o mundo. Li na internet e penso que encaixa como uma luva. Não há autoria certa (há vários — um deles chama Jorge Yamashita). Já a contei aqui, há algum tempo. A estória é a seguinte:

O chefe do departamento de reengenharia ganhou um convite do presidente da empresa para assistir a uma apresentação da "Sinfonia Inacabada" de Franz Schubert, no Teatro Municipal. Como estava impossibilitado de comparecer, passou o convite para o seu gerente de organização, sistemas, métodos e (neo)gestão e pediu que, depois, ele enviasse sua opinião sobre o concerto, porque ele iria almoçar com o presidente, no dia seguinte, e queria saber como havia sido apresentação.
Na manhã seguinte, quase na hora do almoço, o chefe do departamento recebeu, do seu gerente, o seguinte relatório:
1- Por um período considerável de tempo, os músicos com oboé não tinham o que fazer. Sua quantidade deveria ser reduzida e seu trabalho redistribuído pela orquestra, evitando esses picos de inatividade.
2- Todos os doze violinos da primeira seção tocavam notas idênticas. Isso parece ser uma duplicidade desnecessária de esforços e o contingente nessa seção deveria ser drasticamente cortado. Se um alto volume de som fosse requerido, isso poderia ser obtido através de uso de amplificador.
3 - Muito esforço foi desenvolvido em tocar semitons. Isso parece ser um preciosismo desnecessário e seria recomendável que as notas fossem executas no tom mais próximo. Se isso fosse feito, poder-se-ia utilizar estagiários em vez de profissionais.
4 - Não havia utilidade prática em repetir com os metais a mesma passagem já tocada pelas cordas. Se toda essa redundância fosse eliminada, o concerto poderia ser reduzido de duas horas para apenas 20 minutos.
5 - Enfim, sumarizando as observações anteriores, podemos concluir que: se o senhor Schubert tivesse dado um pouco de atenção aos pontos aqui levantados, talvez tivesse tido tempo de acabar a sua sinfonia
6. Resumindo: esse “tal” de Senhor Schubert — do qual, aliás, nunca ouvi falar — esperdiçava tempo e materiais. E era retrógrado. Um dinossauro.
Assinado: Gerente de organização, sistemas, método e (neo)gestão (obs: a assinatura era eletrônica).
Eis a metáfora dos novos tempos. A estorinha é autoexplicativa. Nem precisaria ter escrito a coluna.
O juiz do RN e a decisão mandando "encurtar" a sinfonia (isto é, a petição)
Eis um retrato da pós-modernidade. Tudo pode ser twittado. Shakespeare não deveria ter escrito coisas longas e complexas. Tolstoi, nem falar. Era um chato. Bom é fazer tudo resumido. Como diz o nosso juiz do Rio Grande do Norte, “dada a quantidade de trabalho do Judiciário, os juízes não podem se dar ao luxo de ler livros inteiros no expediente”. Assim mandou — e juiz manda, pois não — que a parte agisse, “reduzindo-a a uma versão objetiva com a extensão estritamente necessária”, sob pena de ser indeferida.

Qual é o sentido de “estritamente necessário”? Teria alguém um aparelho chamado “estritômetro”? Fabricam isso por aí? No despacho, o juiz diz que a prolixidade da inicial desrespeita os princípios da celeridade e da lealdade (sic), por prejudicar a produtividade do Judiciário e encurtar o prazo para a defesa. “O tempo que o juiz gasta lendo páginas inúteis é roubado à tramitação de outro processo”, afirmou nosso juiz do RN.
Mais: Ele considerou que houve abuso do direito de petição (sic), que deve ser inibido pela Justiça. Claro: a justiça é ele! Evidente! Por isso, ele diz: “Forçar o adversário a ler dezenas, quiçá centenas, de páginas supérfluas é uma estratégia desleal para encurtar o prazo de defesa”. Como ele sabe que é supérfluo, se não leu? Hein?
Na sequência, alude: “Quem tem pressa não tem tempo de escrever dezenas de laudas numa petição, cujo objeto poderia ser reduzido a pelo menos 20% do total escrito.” Pronto. Igualzinho ao neogestor que viu a Sinfonia Inacabada de Schubert. Igualzinho.
Vamos falar um pouco de direito, Excelência? Vamos? O que é um princípio? Qualquer livro (com menos de 49 páginas que Sua Excelência considerou demasia) diz que princípios são normas. E isso é assim porque o direito é um sistema de regras e princípios. Então princípios são deontológicos. Mas qual é a sanção para o seu incumprimento? A vontade do juiz? Quer dizer que fazer uma petição com mais páginas que Sua Excelência consegue deglutir tem o condão de violar dois princípios jurídico-constitucionais?
Estamos passando todos os limites. Já não há fundamentos. É a pós-modernidade (ou sua vulgata) que assombra nossas vidas. Não há verdades. Tudo pode ser relativizado. O homem (ou o juiz) é a medida de todas as coisas. Só que essa frase é de Protágoras, o primeiro sofista da cepa. E isso parece que está superado. Ou não?
O que impressiona no caso não é o “entendimento” do juiz no sentido de que estaria sendo violado um princípio (ou dois). O que impressiona é a sua coragem. Como se diz aqui no outro Rio Grande (o do Sul), “que peito tem esse juiz, não”? O Brasil está virando um estado de natureza interpretativo. É a guerra de todos contra todos. Cada um decide como quer. Cada um diz o que quer. Diz-se qualquer coisa sobre qualquer coisa. Um dia a conta vem. Aliás, a conta está a caminho. E a cavalo. As ruas estão mostrando o estado de natureza. Não se obedece mais as leis. Aliás, o que é a lei? A lei é o que juiz diz que é. Não é isso que se "ensina" nas faculdades por aí?
Quando tem gente que diz que “Gadamer inventou o método concretizador” e que Kelsen é um exegeta, por que um juiz não pode indeferir uma sinfonia (quer dizer, uma petição) alegando um conteúdo que não leu? Fossemos médicos, ainda não teríamos inventado a penicilina.
Refaço a pergunta: a justiça tem jeito? Cartas para a coluna.
Numa palavra final.
Não é implicância minha. Mas o cotidiano das práticas jurídicas “não se ajuda muito”. Assim como o cotidiano dos cursinhos e das faculdades. A vingar a tese do juiz do RN, cada juiz de terrae brasilispoderá estabelecer o número de folhas de cada petição inicial ou de cada contestação ou de cada apelação, etc. Como o personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho, cada um dá as palavras (da lei) o sentido que quer. O único problema é que, nesse contexto, muitas das decisões, por exemplo, do ministro Celso de Mello serão nulas, porque demasiado extensas... (sob a ótica do juiz do RN, certo?). E quantas outras decisões do STF e de outros tribunais... Aliás, quantas páginas possui o caso Battisti? Vão invocar a lesão ao meio ambiente? Derrubaram muitas árvores para fabricar o papel usado? Também nesse diapasão os votos dos ministros do STF terão quer limitados em termos de minutos na TV Justiça. E, se a moda pegar mesmo, os livros terão que se adaptar aos tempos de twitter. PS: o que sobra nisso tudo é que os únicos que tem que se moldar às exigências (i)legais do Judiciário...são os advogados. Bingo.

Mas o que mais me intriga é a invocação de princípios por parte do juiz exatamente para a prática de uma ilegalidade. Esse é o paradoxo. Invocar a igualdade para solapar exatamente a igualdade. Sim, porque o que o juiz fez foi aplicar a lei segundo a sua régua. A própria regra (dele). E isso é praticar a mais “perfeita” desigualdade. Isso para dizer o mínimo.
Como se lê em Grande Sertão, Veredas — sim, esse livro de Guimarães Rosa, que tem mais de 49 páginas e que é aquele autor que, certa vez, Pedro Bial equiparou ao programa Big Brother ou vice-versa (e por isso vou estocar comida e construir um bunker):
a água só é limpa nas cabeceiras… O mal ou o bem estão em quem faz. Não é no efeito que dão.
O senhor ouvindo, me entende”!.
Paro por aqui, para não ter minha coluna indeferida por violação do princípio da economia de caracteres.

Revista Consultor Jurídico, 17 de abril de 2014

Fonte:

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